sexta-feira, 27 de maio de 2011

Pensar com os ouvidos

A linguagem que utilizamos quando comunicamos, exprimimos e discutimos ideias costuma ser um bom indicador do grau de desenvolvimento cultural e científico de uma comunidade. A falta de rigor e de precisão, as confusões conceptuais, a opacidade semântica, a terminologia vazia, pomposa e pseudo-científica são indícios claros de atrofiamento cultural, científico e académico. Infelizmente, no nosso país isso verifica-se mesmo onde não seria de esperar: nas escolas e universidades, na comunicação social, em documentos oficiais, etc. 

Vem isto a propósito de uma ficha de avaliação dos professores oriunda do ministério da educação e na qual se pede para avaliar «a planificação do processo de ensino-aprendizagem do professor». Eu bem sei que, a julgar pelo que ouço e vejo escrito quase todos os dias nas escolas, os professores não ensinam; antes participam num processo de ensino-aprendizagem. E, como é isso que se ouve dizer diariamente por pessoas com autoridade na matéria, acabamos quase todos por repetir o mesmo. 

Enfim, num lugar em que se espera que as pessoas pensem com a cabeça, uma boa parte acaba por pensar só com os ouvidos. E assim se repete o infeliz jargão pseudo-científico de que os professores preparam o seu processo de ensino-aprendizagem. 

Mas, se reflectirmos um pouco mais, verificamos que isso não faz qualquer sentido; facilmente percebemos que ao professor cabe ensinar, preparando bem o que e como ensina, ao passo que ao aluno cabe simplesmente aprender. Claro que há aqui uma relação entre quem ensina e quem aprende - e que um lado não existe sem o outro - mas o professor ocupa apenas um dos lados da relação enquanto o aluno ocupa o outro, pois nem a função do professor é aprender nem a do aluno é ensinar. Assim, o que compete ao professor é preparar bem o que ensina, de modo que seja eficaz no que faz. Dizer que o professor deve preparar o seu processo de ensino-aprendizagem faz tanto sentido como afirmar que um vendedor de automóveis deve preparar o seu processo de venda-compra. E cabe na cabeça de alguém dizer que, quando uma pessoa fala com outra, não está bem a falar mas antes num processo de fala-escuta?

Confundir o que é conceptualmente distinto só para dar um ar de falsa erudição é um triste sinal de que a encenação e a pose ocupam o lugar do pensamento. E insistir em tal jargão só porque é o que se costuma ouvir é o mesmo que pensar com os ouvidos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário